"Mesmo que D. Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de D. Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal.Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t'aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.(...)
Talvez a prática mais lastimavelmente absurda, muito usada na geração dita eleita, seja aquela de chamar amigas às namoradas. Isto porque os portugueses, raça danada para os eufemismos, também têm vergonha das palavras namorado e namorada. Quando as apresentam a terceiros, nunca dizem «Esta é a Suzy, a minha namorada» - dizem sempre «Esta é a uma amiga minha, a Suzy», transmitindo a implícita noção, muito cara ao machismo lusitano, de que se trata de uma entre muitas. E, também assim, como se não lhes bastasse dar cabo do Amor, vão contribuíndo para o ajavardamento semântico da Amizade.(...)
A retração épica a que os portugueses se forçam no uso próprio das palavras do amor, quando o contexto é minimamente público, parece atirá-los ilogicamente, para uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram sós com quem amam. Dizer «Eu amo-te» é dizer algo que se faz. Dizer «Eu tenho uma grande paixão por ti» é bastante menos do que isso - é apenas algo que se tem, mais exterior e provisório. Os portugueses, aliás, sempre preferiram a passividade fácil do «ter» à actividade, bastante mais trabalhosa, do «fazer».
A confusão do amar com o gostar, do amor com a paixão, e do afecto, tornam muito difícil a condição do amante em Portugal. Impõe-se rapidaemnte o esclarecimento de todos estes imbróglios. Que bom que seria poder dizer «Estou apaixonado por ela, mas não a amo», ou «já não gosto de ti, embora continue apaixonado» ou «Apresento-te a minha namorada» , ou «Ele é tão amável que não se consegue deixar de amá-lo». Estas distinções fazem parte dos divertimentos sérios das outras culturas e, para pordermos divertirmo-nos e fazê-las também, é urgente repor o vermo «amar» em circulação, deixarmo-nos de tretas, e assim aliviar dramaticamente o peso oneroso que hoje recai sobre a desgraçada e malfadada paixão."
in "A causa das coisas", de Miguel Esteves Cardoso